Tuesday, May 09, 2006

Ainda bem que temos Dr. Lugon...

Discurso do desembargador federal Luiz Carlos de Castro Lugon proferido durante a posse dos novos juízesterça 09052006SAUDAÇÃO AOS JUÍZES FEDERAIS SUBSTITUTOS EMPOSSANDOS Meus novos colegas de magistratura: Em um momento como este, de importância singularíssima na história de vida de pessoas como vós, irmãos em ideais, ora iniciados confrades no culto da Justiça, deveria eu empreender hercúleo esforço para perquirir dentre as jóias da retórica qual a de mais valoroso material e de mais fina arte de ourivesaria para enaltecer tão marcante conquista. Mas, além da míngua de engenho, há em mim uma resistência que repudia o brilho enganador de ouropéis, cujo encanto transitório deixa, logo em seguida, a fugidia impressão de precariedade e ausência frente à contundência de uma realidade de graníticas arestas. Em decorrência, cometo a heresia de abandonar Cícero, Vieira e Rui Barbosa para ir buscar num poeta popular nordestino a expressão que melhor traduz o que ora se está a viver aqui: Belchior, na voz inimitável de Elis Regina, a dizer que “o novo sempre vem.” Mas, o que é o novo? Nazistas julgados por crimes de guerra repetiram sempre a mesma defesa, na qual, creio eu, nem mesmo eles acreditavam: cumpríamos as leis, obedecíamos ordens. A história, no entanto, não os absolve; e nem os deveria a tal pretexto perdoar. É de toda obviedade que o cidadão interage dentro do meio em que é posto, sujeito a uma gama enorme de condicionamentos, que deixa muito menos espaço para o livre arbítrio do que aquele que se nos aparenta facultado. Todavia, nenhuma justificativa se faz suficiente para o abandono de um posicionamento crítico, postando-se a pessoa como demissionária da vontade própria para servir ao Mal. Dos juízes, não se há de esperar uma resposta de igual natureza; a alegação de que “apenas cumprimos as leis”. Também a nós condenar-nos-ia a história. É preciso perguntar: a que sistema servimos? A menos que encastelada na torre mais alta da alienação mais absoluta, nenhuma pessoa há que afirmar que vivemos em uma sociedade justa. As diferenças sociais são clamantes, e não se pode fugir a esta realidade também ululante: brancos e ricos estamos a julgar negros e pobres. E não se há que imaginar uma Têmis cega a desferir a esmo golpes de uma adaga descontrolada. O abismo entre as classes sociais, que se agiganta mais a cada dia em razão de políticas concentradoras de riquezas, torna absurda a figura de um juiz ideologicamente estéril, entronizado sobre um pedestal de alheamento. O juiz não pode ser apenas “la bouche de la loi”, nem um mero repetidor do direito posto. Cumpre-lhe o examinar as diretrizes finalísticas, para que se não faça instrumento de desideratos outros que não a realização da Justiça. A moderna hermenêutica rompeu os grilhões da letra fria da lei. Já não mais se diz in claris cessat interpretatio; a lei deve sempre ser interpretada, em exercício de raciocínio em que não aparece ela como texto isolado, mas ínsita num sistema. Em tal atividade, há sempre de partir da premissa de que o legislador quis o melhor resultado, cumprindo-lhe a ele, juiz, produzir este melhor resultado, mesmo que afrontando a literalidade do texto. Equivocado o dura lex, sed lex. Errado produzir injustiça em nome da lei. As fronteiras entre o legal e o justo não mais se delineiam; a injustiça é ilegal. Se necessário, deve o juiz reescrever a lei; jamais, aplicá-la de modo avesso aos princípios que norteiam a verdadeira justiça. Mas, retorno eu à pergunta: o que é o novo? O novo não é apenas quem chega, pois que o sistema em seus meios de autopreservação tende a reproduzir sempre o mesmo perfil de magistrado, estereotipado dentro do gabarito do que ele, o sistema, pretende de um juiz. O novo é quem difere do modelo, é quem enfrenta o sistema, é quem faz a história. O novo é quem melhora o universo em que habita, apondo-lhe marcas decorrentes da própria cosmovisão. Hão que me desculpar os senhores, agora, se forçado sou a dividir angústias, mas a função de julgar não é cômoda num cenário de tamanhas desigualdades. O saudoso Miguel Reale, a quem se deve toda homenagem, registrou, dentre suas luminosas preleções: “Estão vendo, por conseguinte, que julgar não é um ato tão simples como se pensa. Os juízes, apesar de todas as dificuldades materiais de sua vida, têm sem dúvida uma prerrogativa que os singulariza: a do “poder-dever” de julgar. Muitos poucos homens têm a oportunidade de enunciar um julgamento; e é exatamente porque professa e decide, formulando juízos sobre a conduta alheia, que ele deve ter ciência e consciência da eticidade radical de seu ato, por maiores que possam ser os conhecimentos jurídicos que condicionem sua decisão. A bem ver, a responsabilidade do juiz é dramática, visto como a sentença não se reduz a um simples juízo lógico, porquanto – queiram-no ou não os partidários de uma objetividade isenta – um juízo valorativo, como é o da sentença, não pode deixar de empenhar o juiz como ser humano. Lembrar-se dessa contingência talvez seja o primeiro dever do magistrado, em sua real e legítima aspiração de atingir o eqüitativo e o justo.”(“A Ética do Juiz na Cultura contemporânea”, in “Uma Nova Ética para o Juiz”, coord. José Renato Nalini, Editora Rt, p. 130) A receita para ser juiz está em jamais esquecer que por trás das folhas de papel de cada processo existe gente; gente que espera, gente que anseia, gente que tem fome e sede de Justiça, gente que sofre, gente que suplica. Gente. E é gente que espera pelo novo. O Poder Judiciário sofre cotidiana campanha buscando seu enfraquecimento, porque representa empecilho para as ambições desmedidas de grandes interesses econômicos. Chega-se mesmo a afirmar que o Judiciário brasileiro deve tornar-se “previsível” para os investidores internacionais, o que implicaria, no sentir dos defensores de tal teratológica tese, um aumento significativo na percentagem do PIB. Ora, a possibilidade de vários juízes julgarem de maneira diferente, muito antes que revelar qualquer patologia, significa autonomia, liberdade de julgamento segundo a própria convicção. Para que se tenha segurança jurídica, imprescindível um Judiciário independente. Assim, se o investidor realmente pretende segurança jurídica, há que desejar juízes independentes. Mas, ao que parece, o que está por trás desse argumento é o desejo de um Judiciário que assegure obediência absoluta ao princípio pacta sunt servanda, cerrando os olhos à natureza abusiva das cláusulas impostas aos hipossuficientes; ou seja, a prevalência da lei do mais forte. O novo está no cumprimento da Constituição, na realização dos direitos fundamentais. Já não se pode mais tolerar a hipocrisia de uma Carta Maior fundada em disposições “programáticas”, mera carta de intenções, veículo de promessas jamais cumpridas, pois que pendentes de regulamentação. O novo está na prioridade aos princípios, na interpretação sistêmica, na coragem de encontrar um “sim” que está além do “não” contido na frieza do texto isolado da lei. Já, lamentavelmente, ouvi em ocasião outra, a falácia de que “o juiz não deve fazer caridade com o dinheiro público”, que pode impressionar colegas menos avisados. Quem assim pensa não compreendeu ainda que a vida com dignidade não é um favor que a Constituição promete; é um direito garantido ao cidadão não é uma esmola que se lhe outorga, mas um jus oponível ao Estado. A sociedade justa e solidária pretendida pela Constituição-cidadã há que ser perseguida com a imprescindível dose de assistencialismo; e as sentenças judiciais devem obediência à concreção da justiça e da solidariedade. Enquanto o pobre não for visto como cidadão, detentor de direitos, mas como reles mendigo, não se fará justiça neste país. Que Vossas Excelências saibam constituir o novo. Que o Direito seja visto como um processo de evolução histórica, a que se insiram sempre novas marcas evolutivas, para que se aperfeiçoem as instituições, humanizando-se as relações sociais. Nos que ora chegam, deposita este Tribunal suas mais caras esperanças, na certeza de que a chama sagrada dos ideais comuns mudará de mãos, prosseguindo na sacrossanta jornada na direção da pira olímpica da Justiça. Brevemente serei eu, como a Itabira de Drummond, “apenas um retrato na parede”. Mas de mim não se dirá que permaneci “em casa, guardado por Deus, contando vil metal”. Se “eles venceram”, se “o sinal está fechado pra nós”, conforta-me agora a certeza de que, mais sonante e mais repetido que seja o antigo discurso, o novo virá, o novo sempre virá, o novo nascerá de vós como a flor de Ferreira Goulart, a “brotar do impossível chão”. Tenho dito. Desembargador federal Luiz Carlos de Castro Lugon Presidente da Comissão Examinadora do XII Concurso Público para Provimento de Cargo de Juiz Federal Substituto da 4ª Região - retirado do Site do TRF 4a Região